O analista de sistemas William Cruz, 37 anos, já recusou duas propostas
de emprego porque teria que ir de carro. Não que ele não tenha
habilitação. Mas, há cinco anos, não dirige a não ser em casos de
extrema necessidade. A decisão foi tomada porque William percebeu que se
transformava quando estava ao volante.
“Cheguei a ser perseguido por um maluco com a arma para fora da janela e
a perseguir alguns outros para me vingar de uma fechada”, diz o
ex-motorista agressivo. “Dirigir me tirava do sério e me transformava em
outra pessoa. Cheguei a ter ataques de fúria, aliviados com socos no
volante e gritos de raiva com a janela fechada, por frustração de estar
parado.”
Ele deixou o carro pela bike, e os sintomas passaram. “Dirigir em São
Paulo é o caminho para a insanidade ou o infarto precoce”, afirma.
“Quando comecei a usar a bicicleta na rua me curei disso, porque percebi
o quanto as vidas fora do carro eram frágeis e o quanto aquele
comportamento as colocava em risco.”
William não está sozinho e qualquer motorista nas grandes cidades pode
comprovar isso – dentro ou fora de seu carro. Ao volante, perdemos a
cabeça e fazemos coisas que jamais faríamos em juízo normal. De acordo
com a Polícia Militar de São Paulo, 70 chamadas diárias são para
resolver brigas de trânsito. Mas o que transforma cidadão em monstros ao
volante?
“A raiva vem frustração e falta de respeito pelos outros. É um estado
emocional que vem como uma explosão na mente e no corpo”, diz Leon
James, professor de psicologia da Universidade do Havaí que
especializou-se em stress no trânsito. Ele explica que quanto mais um
motorista fica remoendo um incidente no trânsito e pensando nisso, mais
está predisposto a ter um ataque de fúria. “Eventos negativos no
trânsito são o gatilho da sensação de raiva, que fazem o motorista ter a
sensação de que a culpa é do outro, que o outro é sempre culpado por
seu atraso ou erro”.
Pode parecer que é só o jeito mais “pavio curto” de algumas pessoas, ou
que o trânsito é assim mesmo, mas chegar ao ponto de brigar com
desconhecidos no trânsito pode ser uma doença grave. “A maioria dos
indivíduos agressivos no trânsito é portador de transtorno explosivo
intermitente (TEI), segundo estudos internacionais”, diz a psicóloga
Maria Christina Armbrust Virginelli Lahr. “O ambiente é um
desencadeador.” De acordo com ela, cerca de 6% da população mundial
sofre do transtorno. “A relação do TEI e com o trânsito é estudada há
mais de 60 anos, pelo risco de saúde pública.”
De acordo com a psicóloga, as pessoas não procuram tratamento porque
acham que é normal. “Mas essa agressividade afeta a vida delas, pode
trazer prejuízos pessoais, profissionais”, afirma Maria Christina. “O
agressivo se sente vítima de injustiça, tem incapacidade mental de lidar
com frustração e não suporta ser criticado. Nunca houve tantos
estímulos para o TEI se manifestar”, afirma a psicóloga. Para piorar, a
sensação de anonimato no trânsito favorece o sentimento de hostilidade
pelo outro.
Para ela, existem pessoas que não poderiam sequer ter carta de
habilitação. “A avaliação psicológica do candidato é falha. O
psicotécnico por si só não consegue identificar quem é apto a enfrentar o
trânsito”, afirma. De quebra, quem comete infrações e se mostra incapaz
de se integrar socialmente com seu veículo no trânsito com outras
pessoas não é suficientemente punido. “Não tem contenção para essas
pessoas, que se tornam uma arma contra ela e contra os outros”, diz
Maria Christina.
Problemas de infra-estrutura
Mas o transtorno não acomete a todos que perdem a cabeça. Leon acredita
que a direção agressiva é um mau hábito que tem cura. A raiva
desproporcional que tira as pessoas do sério no trânsito é comum em
grandes cidades e tem até uma expressão em inglês: “road rage”.
Diante de níveis alarmantes dessa doença social, São Paulo tem adotado
medidas para minimizar caos no trânsito, como reduzir a velocidade das
vias. Isso porque a forma como a cidade está organizada também faz
diferença no gatilho da raiva: entre os fatores que Maria Christina
elenca, está o mau estado de conservação das ruas e estradas, a falta de
iluminação, a falta de controle dos agentes de trânsito, a negligência
com os próprios erros, carros obstruindo os cruzamentos, a pressa.
Há uma explicação antropológica também. “Ter uma infraestrutura
funcional e limpa faz você dirigir melhor. É como entrar na casa de uma
pessoa: se é asseada e organizada, você é conduzido ao comportamento
educado”, afirma o antropólogo Roberto da Matta, autor de “Fé em Deus e
Pé na Tábua”, sobre o comportamento do brasileiro no trânsito.
O antropólogo acha absurdo dados como as 70 brigas diárias registradas
pela PM. “Isso nos diz que o espaço público brasileiro precisa ser
politizado, no sentido de uma tomada de consciência para esses
comportamentos absurdos”, afirma. “Somos alérgicos a igualdade. O sinal
vale para todos, no cruzamento existe uma regra para dar passagem. Mas
não somos educados para obedecer isso. No Brasil, desobediência é um
sinal de inferioridade, quem obedecia era o escravo. Quem manda não
obedece. Numa sociedade democrática, todos mandam e obedecem.”
Autocrítica
Essa sensação de ser justiceira no trânsito já fez parte da vida da
designer Priscila Moreno, 28 anos. Ela acumulou tantos pontos que perdeu
a carteira em seis meses. “Brigava muito, com todo mundo. Adorava
‘disciplinar’ os outros, impedindo ultrapassagens pela direita, por
exemplo.” Ao mesmo tempo, abusava da velocidade quando não estava com o
filho a bordo. Priscila bateu o carro da mãe três vezes e duas o do
ex-marido. “Nunca feri ninguém por sorte”, diz. Priscila ainda é
apaixonada por velocidade, mas trocou as quatro rodas por duas sem
motor. Agora, ela policia os próprios comportamentos e não esquece que
tem um filho para criar. “Comecei a fazer terapia também.”
Os especialistas são unânimes: falta olhar para o próprio comportamento.
É como se a culpa fosse sempre do outro, e isso justificasse o
comportamento agressivo. “Numa sociedade liberal e democrática, você
trata o outro como gostaria de ser tratado”, afirma da Matta. Ele
explica que por trás de frases como “mulher no volante, perigo
constante”, ou “só podia ser um velho mesmo”, estão estereótipos que
precisam ser discutidos e desmanchados. O brasileiro também tem uma
relação enviesada com o espaço público, e não sabe se comportar com o
coletivo. “É uma terra de ninguém onde existe uma disputa para
hierarquizar”. Como é impossível saber quem está atrás do volante do
lado, por via das dúvidas é melhor evitar a briga.
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