Um jovem condutor de 21 anos diz que foi provocado e xingado no trânsito pelo condutor de uma moto. Esse condutor reage batendo com seu veículo na traseira da motocicleta, provoca a queda da esposa do motociclista e arrasta o seu corpo por cerca de 800 metros. Segundo testemunhas, ainda tentou livrar-se do corpo da mulher com movimentos de volante para a direita e esquerda. Em seguida, parou o veículo e fugiu. Entre diversas reportagens sobre o assunto e depoimentos contraditórios, chegou-se a anunciar na mídia que o condutor teria consumido bebida alcoólica. À época, pesavam na denúncia contra o condutor três qualificadoras que poderiam levá-lo a uma pena de até 30 anos de prisão: motivo fútil (o motorista teria reagido após trocar xingamentos com o motociclista que conduzia a vítima), crueldade (por ter arrastado a vítima), e o fator surpresa. Mas, uma decisão do Tribunal de Justiça converteu a acusação de homicídio triplamente qualificado para homicídio simples, colocando novamente a sociedade em ebulição.
A vítima de toda essa violência que causou comoção no país e até fora é Maristela Stringhini, 40 anos. Ela ficou cerca de três meses hospitalizada, passou por mais de 10 cirurgias plásticas nos braços, pernas, costas e nos seios, mutilados pela abrasão do arrastamento no asfalto. Na última cirurgia Maristela implantou silicone para tentar reconstruir esteticamente os seios, a maior parte do tempo vive para o tratamento de saúde (que deve durar mais 1 ano) e nos cuidados à filha de 14 anos.
Às vésperas de completar 1 ano da violência que sofreu no trânsito, Maristela afirma que até agora não foi ouvida por juiz nenhum. “O sofrimento foi meu, que estive entre a vida e a morte, perdi os dois seios e fiquei de cama por cerca de seis meses”, afirmou em entrevista. Só que às vésperas de completar 1 ano do fato que me recuso a chamar de acidente ou fatalidade, a maioria dos desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (TJ) decidiu retirar as qualificadoras para que o réu, em vez de homicídio triplamente qualificado (entre 12 e 30 anos), passe a responder por homicídio simples, de pena mais branda (entre 6 e 20 anos de prisão). A defesa do acusado trabalha ainda para que ele não vá a Júri Popular.
Enquanto Maristela Stringhini continua lutando para retomar a vida e contra as sequelas e marcas físicas e psicológicas da violência que sofreu, o acusado aguarda julgamento em liberdade; a defesa faz a parte dela; o Ministério Público também poderá (e esperamos que o faça) recorrer da decisão do TJ e pedir que as qualificadoras sejam incluídas novamente no processo; e a sociedade continua clamando por justiça e pelo fim da impunidade em casos de violência no trânsito.
O fato é que não foi só a vítima que sofreu mutilações e teve a vida quase destruída em uma violência que beira a barbaridade no trânsito, mas toda a sociedade, já rouca e quase afônica de tanto clamar por Justiça e pelo fim da impunidade. Em uma frase memorável da juíza aposentada e então deputada Denise Frossard, que me dou a liberdade de parafrasear, ela se referia a um golpe violento na espinha dorsal da esperança em que um dia se faça Justiça e se acabe com esse sentimento de impunidade e de anodinia de uma sociedade inteira. É assim que vejo o impacto e as consequências da decisão da maioria dos desembargadores do TJ: jogar âncora para quem está se afogando.
O náufrago representa as vítimas de violência no trânsito: os mutilados, os sequelados, os amputados, aqueles que tiveram suas vidas drasticamente mudadas em função daquilo que chamam de acidente ou de fatalidade e tem de conviver com a sensação de abandono e da falta de ter no que acreditar para que a Justiça que tanto esperamos seja feita.
O náufrago representa os mortos em violências no trânsito. Representa aqueles que ficaram órfãos de pai, de filho, de marido, de esposa, de amigos, de irmãos, órfãos das instituições que deveriam protegê-los e zelar pela sua segurança e sua vida, o bem jurídico mais precioso a ser tutelado. E quando esse bem mais precioso é violentado, é agredido, é ameaçado, cabe à instituição que defende e promove a justiça fazer a sua parte para que, no mínimo, a punição seja exemplar e na exata medida da ofensa em todas as suas proporções. Quando isto não acontece é onde se fortalece o sentimento de impunidade, é onde brota a anodinia, a falta de confiança nas instituições, a comoção e a revolta social.
A âncora representa tudo aquilo que retira das pessoas e da sociedade a esperança de que a Justiça seja feita, de que aqueles que ferem, que mutilam e que cometem violência contra as pessoas em qualquer instância da vida não saiam impunes e respondam por seus atos e pelos prejuízos que causaram. Muitos deles, irreversíveis.
As vítimas de violência no trânsito e a sociedade náufraga estão cansadas, no limite, cada dia mais desesperançosas e desacreditadas nas instituições que devem protegê-las e impedir a impunidade (que também vem por decisões e penas brandas). Estão carentes de humanidade, de dignidade, de Justiça e de algo que nos livre do colapso e do caos.
Até quando reinará este sentimento de impunidade para quem fere, mutila, amputa e mata no trânsito? Até quando a sociedade continuará clamando por punição exemplar na exata medida da ofensa e do dano causado? Até quando continuaremos chamando violência de acidente ou fatalidade? Até quando continuaremos vendo as vítimas pagarem caro pelos atos de seus agressores, punidas duplamente: por terem sofrido a violência e pela sensação de impunidade que nos assola?
Até quando veremos toda espécie de agressores e assassinos no trânsito continuarem respondendo em liberdade, continuarem dirigindo depois de ferir e matar no trânsito, apostando na sensação e se sentindo anistiados, alheios à dor das vítimas que eles fizeram e às consequências desastrosas e desumanas de seus atos?
Queremos acreditar que todos os que cometem violência no trânsito serão punidos. Mas, a sociedade clama, anseia e necessita que sejam punidos na exata medida das consequências e da violência dos crimes que cometeram.
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